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Os deuses helênicos são forças, e não pessoas



"Os deuses helênicos são forças, e não pessoas.

(...)

um deus exprime os aspectos e os modos de ação da Força, e não formas pessoais de existência. Do ponto de vista da força, a oposição entre o singular e o universal, o concreto e o abstrato, não funciona. Afrodite é uma beleza — o que nós chamaríamos de essência da beleza — , isto é, a força que se faz presente em todas as coisas belas e pela qual elas se tornaram belas. Já E. Rohde notava que os gregos não conheceram uma unidade da pessoa divina, mas uma unidade da essência divina, e L. Schmidt es­crevia com muita justeza: “Para quem nasceu grego e sente como um grego, o pensamento de uma nítida antítese entre unidade e pluralidade é afastado quando se trata de seres sobrenaturais. Ele concebe sem dificuldade uma unidade de ação sem unidade de pessoa”.

Como a individualidade do deus, assim também o seu antropomorfismo não deve incorrer em engano. Ele tem tam­bém limites muito precisos. Uma força divina traduz sempre, de maneira solidária, os aspectos cósmicos, sociais, humanos, ainda não dissociados. Para um grego, Zeus está relacionado às diversas formas da soberania, do poder sobre outrem; com certas atitudes e comportamentos humanos: respeito aos suplicantes e estrangeiros, contrato, juramento, matrimônio; está relaciona­do também ao céu, à luz, ao raio, à chuva, aos cumes das mon­tanhas, a certas árvores. Esses fenômenos, tão disparatados para nós, encontram-se aproximados no ordenamento que o pensamento religioso opera, enquanto exprimem, cada um à sua maneira, aspectos de uma mesma força. A figuração do deus em uma forma plenamente humana não modifica este dado fundamental: ela constitui um fato de simbolismo religioso que deve ser situado e interpretado exatamente. O ídolo não é um retrato do deus; os deuses não têm corpo; são, por essência, invisíveis, sempre além das formas pelas quais se manifestam ou com as quais se tornam presentes no templo. A relação da divindade com o seu símbolo cultual — seja ele antropomorfo, zoomorfo ou anicônico — nada tem a ver com a relação do corpo com o eu. Na Grécia, a grande estátua cultual antropomorfa é, de início, do tipo de kôuros e kóre; não figura um sujeito singular, uma individualidade divina ou humana, mas um tipo impessoal, o Jovem, a Jovem. Delineia e apresenta a forma do corpo humano em geral. É que, nessa perspectiva, o corpo não aparece ligado a um eu, encarnação de uma pessoa; ele está imbuído de valores religiosos, exprime certas forças; beleza, graça (cháris), esplendor, juventude, saúde, vigor, vida, movimento etc., que pertencem particularmente à divindade e que o corpo humano, mais do que outro, reflete quando, na flor da idade, é como que iluminado por uma luz divina."

 (VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos, p. 284-286.)

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