Eis que lendo este instigante livro do Sandel, encontro aquele brilho da filosofia:
"Em 1980, quando Ronald Reagan concorreu à presidência, o economista Milton Friedman publicou um best-seller em coautoria com a mulher, Rose, intitulado Livres para escolher (Free to Choose). Era uma defesa vigorosa e explícita da economia de livre mercado e tornou-se a bíblia — ou o hino — dos anos Reagan. Ao defender os princípios do laissez-faire contra as objeções igualitárias, Friedman fez uma surpreendente concessão. Ele reconheceu que os indivíduos criados em famílias abastadas e que frequentaram escolas de elite têm uma vantagem injusta em relação àqueles que vêm de lares menos privilegiados. Ele também admitiu que os indivíduos que, sem nenhum mérito próprio, herdaram talento e dotes ocupam uma posição privilegiada e injusta em relação aos demais. Diferentemente de Rawls, no entanto, Friedman insiste em que não devemos tentar remediar essa injustiça. Ao contrário, devemos aprender a conviver com ela e a usufruir dos benefícios que ela proporciona.
'A vida não é justa. É tentador a acreditar que o governo pode consertar aquilo que a natureza criou. Mas também é importante reconhecer que nos beneficiamos muito da injustiça que deploramos. Não é nem um pouco injusto que (...) Muhammad Ali tenha nascido com o talento que o transformou em um grande boxeador (...) É certamente injusto que Muhammad Ali seja capaz de ganhar milhões de dólares em uma só noite. Mas não teria sido ainda mais injusto para as pessoas que gostavam de vê-lo lutar se, em nome de um ideal abstrato de igualdade, Muhammad Ali não pudesse ganhar em uma luta (...) mais do que o trabalhador não qualificado da base da pirâmide recebe por uma jornada no cais do porto?'24
Em Uma teoria da justiça, Rawls rejeita a recomendação de complacência da concepção de Friedman. Numa passagem emocionante, Rawls mostra uma verdade simples da qual frequentemente nos esquecemos: a maneira como as coisas são não determina a maneira como elas deveriam ser.
'Devemos repudiar a alegação de que as instituições sejam sempre falhas porque a distribuição dos talentos naturais e as contingências da circunstância social são injustas, e essa injustiça deve inevitavelmente ser transferida para as providências humanas. Eventualmente essa reflexão é usada como uma desculpa para que se ignore a injustiça, como se a recusa em aceitar a injustiça fosse o mesmo que ser incapaz de aceitar a morte. A distribuição natural não é justa nem injusta; tampouco é injusto que as pessoas nasçam em uma determinada posição na sociedade. Esses fatos são simplesmente naturais. O que é justo ou injusto é a maneira como as instituições lidam com esses fatos'.25
Rawls propõe que lidemos com esses fatos aceitando “compartilhar nosso destino com o próximo” e “só tirando proveito das casualidades da natureza e das circunstâncias sociais quando isso proporcionar o bem de todos”.26
24 Milton e Rose Friedman. Free to Choose: Nova York, Houghton Mifflin Harcourt, 1980, pp. 136-37.
25. Rawls. A Theory of Justice, seção 17.
26. Ibidem. Na edição revisada de A Theory of Justice (1999), Rawls retirou a frase sobre compartilhar o destino uns dos outros.
Comentários
Postar um comentário