Comunicação realizada na 8ª Semana Acadêmica da Faculdade IDC, em 22 de outubro de 2013.
Diogo da Luz
"Ele pensava ver
um elefante
que se exercitava com uma flauta
olhou por uma segunda vez e se deu conta de que era
uma carta de sua mulher.
No final compreendo, disse ele,
o amargor da vida...
Ele pensava ver um albatroz
que batia em torno da lâmpada,
olhou uma segunda vez e se deu conta de que era
um selo postal no valor de um penny.
Farias melhor se voltasses para casa, disse ele,
as noites são muito úmidas...
Ele pensava ver um argumento
que provava que ele era o Papa,
olhou uma segunda vez e se deu conta de que era
uma barra de sabão pintada.
Um acontecimento tão terríveI, disse com uma voz fraca,
extingue toda esperança."
Lewis Carroll - Silvia e Bruno
que se exercitava com uma flauta
olhou por uma segunda vez e se deu conta de que era
uma carta de sua mulher.
No final compreendo, disse ele,
o amargor da vida...
Ele pensava ver um albatroz
que batia em torno da lâmpada,
olhou uma segunda vez e se deu conta de que era
um selo postal no valor de um penny.
Farias melhor se voltasses para casa, disse ele,
as noites são muito úmidas...
Ele pensava ver um argumento
que provava que ele era o Papa,
olhou uma segunda vez e se deu conta de que era
uma barra de sabão pintada.
Um acontecimento tão terríveI, disse com uma voz fraca,
extingue toda esperança."
Lewis Carroll - Silvia e Bruno
(...)
Diógenes Laércio nos conta que os estóicos fizeram uma analogia
entre a filosofia e um ovo: a casca do ovo seria a lógica, a clara a
moral e a gema a física. O âmbito da moral, neste caso, fica
explicitamente colocado entre a casca lógica superficial e a gema
física profunda. Quem já entrou em contato com algum conteúdo de
filosofia estóica, percebeu que esses filósofos preocupavam-se em
manter a serenidade e ensinavam que não se deve buscar a felicidade
em nada que não esteja sob o poder do próprio indivíduo. É,
portanto, uma filosofia que condena as paixões que retiram o poder
sobre si próprio.
Um estudo inicial pode parecer indicar que a austeridade na filosofia
estóica considera as vontades profundas do indivíduo como algo
ruim. Entretanto, um estudo mais criterioso coloca justamente o
contrário, pois demonstrará que se considera o sentido na relação
entre a profundidade do indivíduo e os acontecimentos.
Para compreender melhor a filosofia estóica, primeiramente deve-se
ter clara a ideia de que eles entendiam que a phýsis tudo
abarca, e que as relações de causa e efeito somente ocorrem na
interação entre os corpos. Os corpos são os únicos capazes de
agir e sofrer ação, e isso servia como subsídio para a compreensão
da corporeidade da alma. Além do mais, de acordo com Brunschwig, as
virtudes também são consideradas corpos, pois são capazes de agir
sobre outros corpos.
A linguagem (lékton) é, porém, considerada como algo
incorpóreo e por isso é identificada como uma quase-causa, pois não
estabelece uma relação causal verdadeira. Sendo assim, podemos
afirmar que a moralidade estóica está de acordo com a física.
Contudo, como relacionar essa moral (clara do ovo) com as verdadeiras
causas da física? E qual seria o papel da lógica (casca do ovo)
nesse âmbito?
Inicialmente, Deleuze afirma que a moral estóica consiste em querer
o acontecimento, em querer o que acontece enquanto acontece, como uma
espécie de sintonia com o destino. Isso, no entanto, faz também
despertar o interesse em antecipar os acontecimentos futuros. Na Roma
antiga era comum recorrer a interpretações divinatórias com o
intuito de prever os acontecimentos. Alguns métodos eram utilizados
pelos adivinhos para interpretar determinadas representações, como,
por exemplo, a análise das linhas de vôos executadas por pássaros
em determinados locais do céu, ou a leitura das marcas deixadas pelo
contato do fígado de um animal em uma superfície. A adivinhação é
como uma arte das linhas, uma arte das superfícies. A interpretação
divinatória consiste em relacionar o acontecimento puro com a
profundidade dos corpos. Dessa forma, Deleuze divide duas operações:
"Seria sem dúvida preciso distribuir duas operações, a
produção de uma superfície física para linhas ainda corporais,
imagens, impressões ou representações e a tradução destas numa
superfície “metafísica” em que não jogam mais do que as linhas
incorporais do acontecimento puro, que constitui o sentido
interpretado destas imagens." (DELEUZE, 2011,)
Ou seja, estas duas operações seriam:
(a) produção de imagens, impressões ou representações;
(b) tradução dessas imagens em uma superfície “metafísica”
que vise uma interpretação de sentido;
Deleuze afirma, contudo, que os estóicos nunca puderam e nem
quiseram confiar em métodos adivinhatórios, optando pelo método
lógico. Segundo Pinheiros, porém, a filosofia estóica foi sim
influenciada pela astrologia, muito em voga naquela época, sendo
utilizada como instrumento para investigar o destino. A astrologia é,
inclusive, um motivo para a crítica de Plotino às filosofias
fatalistas, conforme descrito na segunda Enéada.
Questionamentos à parte, Deleuze cita Victor Goldschmidt como um
intérprete que observou esses dois pólos na filosofia estóica: por
um lado, a ideia de participar “de uma visão divina, reunindo em
profundidade todas as causas físicas entre si na unidade de um
presente cósmico, para daí tirar a adivinhação dos acontecimentos
que resultam”; por outro lado, trata-se de o querer se conjugar com
o acontecimento, “sem nenhuma interpretação, graças a um 'uso
das representações' que acompanha desde o começo a efetuação do
acontecimento mesmo atribuindo-lhe o mais limitado presente”. No
primeiro caso, “vamos do presente cósmico ao acontecimento ainda
não efetuado”; já no outro caso, “do acontecimento puro à sua
mais limitada efetuação presente”. A primeira forma relaciona o
acontecimento às suas causas corporais, às suas causas físicas. A
segunda relaciona o acontecimento à sua quase-causa. Essa
quase-causa é como algo que perpassa enquanto a ação se efetua.
Deleuze descarta a primeira forma de interpretação (adivinhações)
para a formulação da moral estóica, pois diagnostica que “os
acontecimentos, sendo efeitos incorporais, diferem em natureza das
causas corporais de que eles resultam”. Nisso, entende-se como
acontecimento aquilo que podemos extrair do que acontece. O fluxo dos
acontecimentos não produz algo corporal, ele é um efeito das
relações causais.
Mesmo sabendo que existem obscuridades no legado filosófico estóico,
é possível afirmar que “somente os acontecimentos incorporais
constituem o sentido expresso”. O sentido não está na relação
causal entre os corpos, mas sim em um âmbito imanente a essas
relações. O acontecimento, enquanto momento, é o incorporal que
“nos dá o sinal”. O sentido também não é objeto de
representação, mas é algo que interfere na representação, além
de conferir um valor especial ao acontecimento. Deleuze utiliza a
morte como um exemplo:
"Saber que somos mortais é um saber apodítico, mas
vazio e abstrato, que as mortes efetivas e sucessivas não bastam
certamente para preencher adequadamente, enquanto não aprendermos o
morrer como acontecimento impessoal provido de uma estrutura
problemática sempre aberta (onde e quando?)." (DELEUZE, 2011)
O sábio estóico é aquele que “‘se identifica’ à
quase-causa”. Ele faz uma conjugação entre esse nível
superficial e a profundidade dos corpos, de forma a se identificar
com o acontecimento. Essa união foi explicada, de forma mais
racional, por Plutarco, ao considerar que o sábio estóico seria
“capaz de tudo fazer, não por atingir o fim, mas por ter feito
tudo o que dependia dele para atingi-lo”. Entretanto, Deleuze
considera esta racionalização de Plutarco como algo hostil ao
estoicismo. Para isso, prefere um exemplo mais próximo do Zen, o
exemplo do arqueiro: “o arqueiro deve atingir ao ponto em que o
visado é também o não-visado, isto é, o próprio atirador em que
a flecha desliza sobre sua linha reta criando seu próprio fim, em
que a superfície do alvo é também a reta e o ponto, o atirador, o
tiro e o atirado”. Dessa forma, o sábio estóico compreende o
acontecimento puro na sua verdade, sendo essa verdade a verdade
eterna, que independe das correlações ilimitadas que ocorrem no
âmbito dos acontecimentos. Essa verdade independente está no âmbito
do tempo de Aion. Aion é o tempo dos deuses, o tempo eterno,
diferentemente de Cronos que é o tempo medido, o tempo em que as
coisas perecem. O que é eterno e verdadeiro pertence ao tempo de
Aion; o que é contingente pertence ao tempo cronológico.
O sábio, ao se identificar à quase-causa, quer “corporalizar o
seu efeito incorporal”. Para exemplificar, Deleuze cita a inversão
da tradição platônica identificada por Goldschimdt ao analisar um
acontecimento como o passear: “O passeio, incorporal,
enquanto maneira de ser, toma corpo sob o efeito do princípio
hegemônico que aí se manifesta”. Ou seja, nesta citação fica
demonstrada a inversão, pois é através do efeito do hegemonikon
que há nos corpos que podemos identificar o passeio. Como foi dito,
o passeio toma corpo, ou seja, o passeio é corporificado e esta
corporificação é identificada pelo acontecimento.
A quase-causa somente opera, não cria nada; ela dobra a causalidade
física, “encarna o acontecimento no mais limitado presente”, sem
subdivisão entre passado e futuro. “O ator se atém ao instante
enquanto o personagem que ele desempenha espera ou teme no futuro,
rememora-se ou se arrepende no passado: é neste sentido que o ator
representa”. É, portanto, a maximização do Aion e a minimização
de Cronos. O sábio estóico alinha-se ao seu destino pela linha de
Aion.
Referências
DELEUZE, Gilles. Lógica
do Sentido. Trad. Luiz Roberto
Salinas Fortes. 5ª Ed. São Paulo. Perspectiva, 2011.
DIÔGENES
LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres.
Trad. Mário da Gama Kury. 2ª
ed. Brasília: UNB, 1997.
PINHEIRO, Marcus Reis.
Determinismo, Liberdade e Astrologia
nos Estóicos. História, imagem e narrativas.
Nº 10. Abril de 2010
BRUNSCHWIG,
J.; INWOOD, B. (Org.). Estóicos.
Petrópolis: Odysseus, 2006.
PLOTINO.
Enéada II. Trad. João
Lupi. Ed. Vozes, 2010.
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