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O LADO OCULTO DA CIÊNCIA


Diogo Luz
 
No último fim-de-semana assisti a uma reportagem sobre adolescentes nordestinos que fizeram uma pesquisa científica. O objetivo destes jovens foi demonstrar como a cera de abelha pode servir como uma capa protetora que aumenta o período de conservação de frutas. A inspiração deles veio através da história, ao descobrirem o quanto a cera de abelha foi importante no processo de mumificação dos mortos no Egito Antigo. Muito interessante. Também achei interessante que a mesma rede de televisão que exibiu a reportagem - Rede Globo - também está atuando, através da fundação que leva o nome de seu ex-proprietário - Roberto Marinho -, no financiamento do prêmio Jovem Cientista 2013, juntamente com outras grandes empresas e com o CNPq (órgão governamental destinado ao fomento da pesquisa científica e tecnológica). Mas, pode alguém perguntar, por que achar isso interessante? Não parece ser algo normal, quase rotineiro, notícias sobre os benefícios da pesquisa científica em nossas vidas? O que poderia ser falado a mais sobre essa questão que já adentrou em nosso cotidiano? 

Penso que é justamente neste momento, em que tudo parece estar dado, em que o aparentemente óbvio se estabelece, que se faz necessária a reflexão filosófica. A filosofia e o óbvio têm uma relação estreita e provocativa: ao se filosofar, fala-se do óbvio, mas de maneira que provoca reações diferentes e, muitas vezes, inesperadas. No caso da ciência, no caso de uma sociedade que já tem introjetada conceitos como “bom” ou “ruim” vinculados à inovação científica, pode-se falar muito. E, com certeza, não se trata de um falar vazio.

Henri Bergson (1859-1941), filósofo francês, afirmou que a ciência nos é útil por ser capaz de nos  proporcionar maior conforto, porém através dela não somos capazes de tomar a realidade tal qual como ela é, pois, no pensamento científico, vamos de um fragmento a outro, ignorando a continuidade que perpassa a realidade. Bergson compara este pensamento fragmentário à prática cinematográfica, que se utiliza da exibição de imagens que simulam movimento através da justaposição de fotografias em alta velocidade. É através da justaposição de momentos que o cinema cria um simulacro da realidade. 

Tanto na ciência quanto na produção cinematográfica é necessário um alto desenvolvimento técnico para as suas realizações. Afinal, estas práticas puderam ser realizadas através da utilização de um detalhado protocolo de procedimentos estudados e concretizados, tanto na prática científica quanto na construção de uma câmera filmadora. Notemos, portanto, que estamos adentrando em um caminho mais profundo na questão científica: a questão da técnica.

“A questão da técnica” é a tradução do título de uma conferência proferida por um filósofo do século XX, o alemão Martin Heidegger. No texto desta conferência, Heidegger aborda a questão da técnica através do seu método filosófico hermenêutico-fenomenológico: fenomenológico, porque a exposição se dá através da descrição de fenômenos, extinguindo a separação entre sujeito e objeto; hermenêutico, porque interpreta esses fenômenos. Destarte, cabe ao homem, desde já no Ser, interpretar os fenômenos que ocorrem.

De acordo com Heidegger, a técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. Ao pensar a técnica, podemos considerá-la tanto como um meio para fins quanto como um fazer do homem. Heidegger afirma que estas duas formas estão correlacionadas, pois empregar meios para estabelecer fins constitui um fazer humano. No caso da técnica moderna, esta aparece no colocar/pôr exercido pelo homem como uma com-posição/armação que visa a sua subsistência. Nisto, pode-se perguntar: mas por que um colocar/pôr do homem? O que significa isso? Talvez se possa esclarecer melhor estas dúvidas se entendermos que Heidegger é um metafísico que se atém aos fenômenos, e não a explicações influenciadas por uma ideal científico positivista. De acordo com o filósofo alemão, que não se prendeu a pre-supostos empíricos, a ação humana já está desde sempre envolvida no Ser enquanto existência. Sendo assim, quando o homem produz, ele leva do ocultamento para o descobrimento. A técnica, portanto, não é um mero meio, mas um modo de desvelamento (alethéia), de desocultamento do Ser. Na medida em que o homem cultiva a técnica, ele toma parte no que Heidegger chama de um encomendar/mandar vir (Bestellen) enquanto um modo de desvelar.

Vimos que Heidegger afirma que a com-posição é o modo de desvelamento imperante na técnica moderna. É a forma de aparelhar para a disposição do homem. Mas temos que lembrar que foi por essa mesma técnica moderna que foram construídas aeronaves tanto para transportar pessoas quanto para dizimar outras milhares nas duas grandes guerras mundiais. Na técnica moderna também reside o perigo de o homem perder-se nela ao não considerar outros modos de desvelamento. Ao acatar somente a técnica moderna, o homem encontra apenas aquilo que subsiste na medida em que é criado por ele, passando a pensar a realidade dessa forma, desconsiderando o mistério de sua essência em um conformismo espantoso.

Até o momento, foi utilizado seguidas vezes o adjetivo “moderna” ao falar da técnica. Este adjetivo tem uma carga histórica que remete ao período posterior à Idade Média, quando o homem modifica a visão que tem do mundo e da natureza. É importante salientar, contudo, que a técnica pode ser usada para outros fins. Heidegger afirma que é justamente quando se percebe a técnica moderna como perigo que se abre o caminho para a salvação. É a salvação do problema de a técnica fechar-se na com-posição. Expandir o horizonte da técnica pode ser surpreendente. Por exemplo, se analisarmos a etimologia da palavra técnica, notaremos que ela advém do termo grego techné, que tinha um significado amplo: significava um modo de desvelar que produz a verdade no brilho do que aparece. Além disso, uma forma de techné que se destacou entre os gregos chegou a ter um nome específico: poiésis. A poiésis estabelecia-se em uma ação produtiva desvelante que carregava aquilo que hoje chamamos de arte do belo, do poético.

Por fim, dada a importância que a prática científica alcançou nos dias de hoje, ainda fortemente influenciada pelo positivismo científico, sendo exaltada como uma atividade valorosa, torna-se imperioso trazer à tona aquilo que ficou oculto nesta prática. Como diz Heidegger: “Se a física moderna sempre mais necessita haver-se com o fato de que seu âmbito de representação permanece não intuível, esta renúncia não foi enunciada por uma comissão de pesquisadores.”(HEIDEGGER, 2007, pg. 387)



Referências:

HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Revista Scientia Studia, 2007.

HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. 2ª edição. Tradução Jorge Eduardo Rivera. Santiago do Chile: Editorial Universitária, S.A., 1998.

SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000.

STEIN, Ernildo. Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2002.

BERGSON, Henri. A Evolução Criadora. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005. 

CASTRO, Manuel António. A Construção Poética do Real. Rio de Janeiro:Editora 7 Letras, 2004.

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