Cabe lembrar, aliás, que para Cícero não se trata apenas de pensar bem teorias, mas também a si mesmo. Como a filosofia para os antigos servia para se aproximar efetivamente da sabedoria, tal prática servia igualmente para se buscar uma vida mais sábia e, no caso, melhor.

Em vista disso, selecionei um trecho do livro Cícero, de Auvray-Assayas, que expõe a forma como pensador romano relaciona a oratória a uma terapêutica daquilo que os antigos chamavam de paixões (impulsos emocionais):
"Contestando a ideia defendida pelos peripatéticos [aristotélicos], para quem as paixões são aguilhões úteis e naturais, Cícero pode apontar algumas distinções essenciais: a coragem no campo de batalha não precisa da fúria, conforme anseiam os peripatéticos leitores de Homero, e é preciso distinguir claramente os impulsos próprios à coragem (impetus) da raiva furiosa que dá a ilusão de mobilizar forças (Disc. Tusc. 4, 50). Do mesmo modo, o gosto (studium) que nos impulsiona a viajar ou a estudar não deve ser confundido com o desejo (libido) (4, 53). Se essas distinções não são estabelecidas, somos levados a tomar todo movimento por um movimento regrado; em contrapartida, se se qualifica de natural todo movimento passional, somos conduzidos a preservá-lo mesmo que seu excesso o torne nocivo ao homem (4, 57).
Apenas os movimentos que não se opõem à razão, mas estão em conformidade com ela, contribuem para a plena realização do homem: movimentos de felicidade (gaudium) suscitados pela contemplação do mundo (5, 70), aprovação (iucunditas) oriunda do convívio com os amigos (5, 72), prazer e deleite (voluptas et delectatio) que levam os artistas a criar e os sábios a prosseguir com suas investigações (5, 114). Todos esses impulsos que permitem ao homem se desenvolver, constituindo a vida do sabio, Cícero os oferece em contraponto à estrita impassibilidade do estoico e à ataraxia [imperturbabilidade] do epicurista. Esses movimentos internos reforçam a coesão do homem e o orientam em direção ao mundo exterior e aos outros homens: eles o levam também a exprimir seus sentimentos e, ao mesmo tempo, a restituir, numa linguagem acessível aos outros, os sutis deslocamentos que produziram nele felicidade, sorriso e prazer.
(...)
Não é, portanto, preconizando a erradicação das paixões que Cícero elabora sua reflexão ética, mas, ao contrário, é estudando-as para ser capaz de reproduzi-las [no âmbito da oratória], e então as dominando perfeitamente, ou seja, utilizando o corpo e as informações que ele sabe reter. (...) Cícero recorda que, na atuação, o bom orador mantém sempre o controle sobre o sentimento que provoca nos outros. Nessas condições, pode-se verdadeiramente saber onde está o excesso e, por conseguinte, em quais limites se encontra a moderação."
AUVRAY-ASSAYAS, C. Cícero, p. 122-124.
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