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A luta cotidiana contra os falsos valores


Lendo a introdução deste livro que traduz as Cartas escritas por Sêneca, deparei-me com um trecho instigante e extremamante relevante para o nosso tempo. Tive vontade de compartilhar. O trecho é este:
"No seu livro Über den Ungehorsam, referindo-se aos nossos tempos, escreveu Erich Fromm:
'É indubitável que nunca como hoje está tão difundido no mundo o conhecimento das grandes ideias da humanidade. Nunca, contudo, foi a sua influência também tão diminuta. Os pensamentos de Platão e Aristóteles, dos Profetas e de Cristo, de Espinoza e de Kant são hoje conhecidos por milhões de pessoas cultas na Europa e na América. Eles são ensinados em inúmeras Escolas, sobre alguns deles fazem-se prédicas em todo o mundo nas Igrejas de todas as confissões. E tudo isto se verifica simultaneamente num mundo em que se presta obediência aos princípios de um egoísmo sem limites, se cultiva um nacionalismo histérico e se prepara um tresloucado genocídio. Como é possível explicar semelhante contradição?'
Nunca Séneca exprimiu de uma forma tão nítida a discrepância verificável entre a cultura entendida e praticada como mera soma de conhecimentos e a "incultura" de facto existente nas relações entre os homens, quer se trate das relações dos indivíduos entre si, do poder e do povo, ou das nações umas com as outras. Mas, mutatis mutandis, é este um problema que subjaz em maior ou menor grau a todos os seus escritos. Quando ele, por exemplo, se interroga sobre que interesse pode ter conhecer se Homero foi ou não mais antigo do que Hesíodo, se Hécuba foi mais nova ou mais velha do que Helena ou que idade tinham Aquiles e Pátroclo, não é isto o mesmo que questionar o significado de uma cultura entendida como erudição estéril em detrimento de uma cultura autêntica, assimilada, interiorizada e traduzida numa vivência - no mais amplo sentido da palavra - humanista?
Séneca, talvez num grau mais intenso do que qualquer outro pensador, é um homem "em situação". Salvo nos últimos tempos da sua existência sempre viveu plenamente inserido na vida e participou nos problemas da Roma do tempo, numa carreira ímpar em que conheceu a fama como orador, quase foi vítima de um crime político, sofreu o exílio ainda em consequência de intrigas políticas, regressou em triunfo e durante alguns anos exerceu na prática o poder, para conhecer enfim a desgraça e vir a ser constrangido ao suicídio para evitar a execução por alegada participação numa conjura para derrubar o imperador. A sua filosofia, portanto, não é fruto de uma meditação abstracta realizada em qualquer hipermundo, mas sim resultado de uma luta de todos os dias contra as imposições do momento, contra a fortuna e a adversidade, contra as próprias fraquezas, o inimigo mais difícil de vencer! Daí que Séneca tenha entendido a sua vida e a sua filosofia como um combate quotidiano contra o mundo e contra si mesmo; uma abundância de passos confirma que a filosofia é vista como uma militia e o filósofo como um soldado sempre em pé de guerra. Mas não apenas a sua própria vida Séneca concebia como uma luta: também o é a de todos os homens, só que muitos, talvez a maioria, se abandona sem resistência às ideias feitas e aos falsos valores impostos pela sociedade, sendo vencidos antes mesmo de lutarem."

J. A. SEGURADO E CAMPOS. Introdução, p. XX-XXII. In: SÊNECA. Cartas a Lucílio. Trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

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