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Montaigne e a Providência divina: fortunas e infortúnios


Trecho extraído dos ensaios de Montaigne:

Que é preciso prudência para se meter a julgar os decretos divinos

O verdadeiro campo e assunto da impostura são as coisas desconhecidas, tanto mais que, em primeiro lugar, a própria estranheza lhes dá crédito, e, além disso, não estando mais sujeitas a nossos raciocínios habituais, nos retiram o meio de combatê-las. Por isso, diz Platão, é bem mais fácil satisfazer as pessoas ao falar da natureza dos deuses que da natureza dos homens, pois a ignorância dos ouvintes permite ao manejo de tais matérias secretas uma bela e longa carreira, em absoluta liberdade. Daí resulta que em nada se crê tão firmemente como naquilo que menos se sabe, e que não há pessoas tão seguras quanto as que nos contam fábulas, como alquimistas, especialistas em prognósticos, astrólogos, quiromantes, médicos, id genus omne. [todos os dessa espécie.] A eles, de bom grado eu acrescentaria, se me atrevesse, uma profusão de pessoas, intérpretes e controladores comuns dos desígnios de Deus, que pretendem encontrar as causas de cada acontecimento e ver nos segredos da vontade divina os motivos incompreensíveis de suas obras. E embora a variedade e a discordância contínuas dos acontecimentos os relegue de um canto a outro, e do Ocidente ao Oriente, não param de correr, porém, atrás de sua bola e, com o mesmo lápis, de pintar o branco e o preto. Numa nação indígena há a louvável observância de que, quando malsucedidos em um confronto ou numa batalha, eles pedem publicamente perdão ao Sol, que é o deus deles, como se fosse uma ação injusta, atribuindo sua ventura ou desventura à razão divina e submetendo-lhe seu julgamento e suas reflexões. Basta a um cristão crer que todas as coisas vêm de Deus para recebê-las com o reconhecimento de Sua divina e inescrutável sapiência; por conseguinte, aceitá-las com gosto, sob qualquer aspecto que lhe sejam enviadas. Mas acho errado o que vejo em prática, de procurar firmar e apoiar nossa religião na prosperidade de nossos empreendimentos. Nossa fé tem muitos outros fundamentos sem ser necessário legitimá-la pelos acontecimentos; pois estando o povo acostumado com esses argumentos plausíveis e propriamente a seu gosto, há o perigo de que isso abale sua fé quando os acontecimentos, por sua vez, se apresentam contrários e desvantajosos, assim como nas guerras de religião em que estamos os que levaram vantagem na batalha de La Rochelabeille fizeram grande festa desse acontecimento e serviram-se dessa boa fortuna para uma aprovação irrefutável de seu partido; mas quando depois vêm a desculpar seus infortúnios de Montcontour e de Jarnac, como se fossem varas e castigos paternos, se não tiverem um povo totalmente à sua mercê o fazem muito facilmente sentir que é pegar duas farinhas num mesmo saco, e com a mesma boca soprar o quente e o frio. Seria melhor falar ao povo sobre os verdadeiros fundamentos da verdade. Foi uma bela batalha naval que se ganhou nestes últimos meses contra os turcos, sob o comando de dom João da Áustria; mas Deus também quis, outras vezes, fazer outras tantas à nossa custa. Em suma, é difícil trazer as coisas divinas para a nossa balança sem que sofram depreciação. E quem quisesse dar razão ao fato de que Ário e seu papa Leão, chefes principais dessa heresia, morreram em momentos diferentes de mortes tão parecidas e tão estranhas (pois, afastados de um debate para ir à privada por causa de uma dor de barriga, lá os dois renderam subitamente a alma) e exagerar essa vingança divina pela circunstância do lugar, bem poderia acrescentar ainda a morte de Heliogábalo, que também foi morto numa latrina. Pois é! Irineu foi vítima do mesmo infortúnio. Deus quer ensinar-nos que os bons têm outra coisa a esperar e os maus outra coisa a temer além das fortunas e dos infortúnios deste mundo, e maneja-os e aplica- os segundo suas intenções ocultas; e retira-nos o meio de, tolamente, tirarmos proveito deles. E enganam-se os que querem prevalecer-se disso pela razão humana. Pois jamais dão uma estocada sem que recebam duas. Santo Agostinho dá uma bela prova disso contra seus adversários. É um conflito que se decide pelas armas da memória, mais que pelas da razão. Devemos nos contentar com a luz que o sol se apraz de nos comunicar por seus raios, e quem erguer os olhos para receber uma luz maior em seu próprio corpo, que não ache estranho se, como castigo de sua petulância, perder a visão. Quis hominum potest scire consilium Dei? aut quis poterit cogitare, quid velit Dominus ? Qual é o homem que pode conhecer os desígnios de Deus? Ou quem poderá penetrar o querer de Deus?

Fonte: MONTAIGNE. Os ensaios. Seleção Organização de M. A. Screech. Tradução e notas de Rosa Freire D'Aguiar. Penguim; Companhia das Letras, 2010.

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