Trecho extraído das cartas de Sêneca:
"É esse então o teu problema, é por isso que adias a tua formação: para não teres de recear a pobreza! E não será a pobreza desejável? Muitos há a quem a riqueza impediu de dedicar-se à filosofia. A pobreza não é obstáculo, não é motivo de angústias. O pobre, quando ouve os clarins soarem, sabe que o caso lhe não respeita; quando ouve gritar por água, procura o meio de escapar ao fogo, sem cuidar dos objectos a salvar; se tem de viajar por mar, não provoca bulício no porto nem faz com que a escolta dum único viajante encha de estrépito o cais; não tem à sua volta uma multidão de escravos para cujo sustento seja preciso recorrer à fertilidade de regiões longínquas. Não tem problema sustentar meia-dúzia de estômagos de hábitos saudáveis e sem outra ambição senão serem saciados. A fome contenta-se com pouco, os paladares requintados é que têm grandes exigências. A pobreza limita-se a satisfazer as necessidades mais prementes: por que deverás tu recusá-la como companheira, se até os ricos de bom senso lhe adaptam os hábitos? Se quiseres estar livre para cuidares da alma deverás ser pobre, ou fazer vida de pobre. O estudo da filosofia não dará fruto se não adaptares uma vida frugal; ora a frugalidade não passa de pobreza voluntária. Deixa-te, portanto, de pretextos: "Ainda não tenho o rendimento suficiente; quando oobtiver, dedicar-me-ei inteiramente à filosofia" . Ora é precisamente a filosofia que tu deves obter antes de mais nada, em vez de a adiares, de a deixares para o fim; é por ela que tens de começar. "Quero arranjar primeiro os meios de que viver". O que deves é aprender a "arranjar-te" a ti mesmo: se algo te impede de viver bem, nada te pode impedir de morrer bem. Não há qualquer razão para que a pobreza, ou mesmo a indigência, nos afaste da filosofia. Para obtermos os seus benefícios devemos suportar até a fome! Quantas cidades cercadas não a aguentaram, sem esperanças de outra recompensa para o seu sofrimento para além de evitar sujeitar-se ao arbítrio dos vencedores? A recompensa que te promete a filosofia é de longe superior: a liberdade permanente, a ausência de receio quer ante os homens, quer ante os deuses. Para alcançar tal recompensa não achas que vale a pena suportar até a fome? Houve exércitos que experimentaram a mais completa carência, vivendo de raízes, matando a fome com coisas que só até o mencioná-las repugna; e aguentaram tudo para defender um reino - bem podes espantar-te - estrangeiro! 14 Para libertar a alma das paixões haverá quem hesite em suportar a pobreza? Não há qualquer aquisição prévia a fazer: pode chegar-se à filosofia mesmo sem viático ! Pois quê, depois de teres tudo o mais é que pretendes adquirir a sabedoria? Ela será apenas mais um objecto na tua vida, será, por assim dizer, um mero acessório? Ora bem: se tu já possuis alguma coisa começa a filosofar (doutro modo como saberás se as tuas posses não são já demasiadas?); se nada possuis, procura a filosofia antes de mais nada. "Mas faltar-me-ão recursos indispensáveis". Para começar, não poderão faltar-te recursos, porque as exigências naturais são mínimas e o sábio adapta-se ao que é natural. Se se vir reduzido às mais extremas carências, nesse caso abandonará a vida e deixará de ser um fardo para si próprio. Se dispuser dos recursos mínimos indispensáveis à conservação da vida, usará esses recursos e, sem se preocupar nem angustiar para além do indispensável, dará o "quanto baste" ao estômago e aos músculos; observando as fadigas dos ricaços, a agitação sem freio da corrida às riquezas, o sábio, tranquilo e contente, rir-se-á, dizendo: "Para quê adiares a tua própria formação? Estás à espera de receberes juros, de tirares lucro de alguma operação comercial, de seres contemplado no testamento dum velho rico, quando podes tornar-te rico instantaneamente? A sabedoria pôe a riqueza à tua mão: ao mostrar que é supérflua, está como que a oferecer-ta!". Mas estas considerações convirão melhor a outros; tú estás mais perto da gente abastada. Se mudares de época, serás rico em excesso, em todas as épocas uma só coisa permanece idêntica - aquilo que é bastante." (SÊNECA, Cartas a Lucílio, 17, 3-10).
Obs.: Embora Sêneca tenha escrito essas linhas, ele nunca foi pobre. Isso inclusive foi motivo para críticas à sua defesa do estoicismo, cf. VEYNE, P. Séneca y el estoicismo, p. 207-212.
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